Os agentes de campo compartilham seus aprendizados, reencontros, novas metodologias e formas de executar a caraterização de territórios tradicionais durante a pandemia de Covid 19.
Desde 2020, quando começou a pandemia, as equipes de campo do Projeto Povos passaram por uma série de desafios nas metodologias utilizadas para realizar a caracterização de territórios tradicionais em Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba. Durante algum tempo, não puderam ir à campo. E depois, seguindo todos os protocolos de cuidado, voltaram a realizar a caracterização, ferramenta fundamental para fortalecer as comunidades diante de impactos trazidos por grandes empreendimentos.
“O Projeto Povos teve que se readaptar, reorganizar, resistir e seguir adiante na luta de dar continuidade ao processo de cartografia social e caracterização durante a pandemia. Concluímos o processo de validação de produtos elaborados nos três primeiros microterritórios e, em breve, com essas publicações já validadas, tanto pelas comunidades como pelas comissões nacionais (CONAQ, CGY E CNCTC), iremos entregá-las aos verdadeiros donos: os comunitários e comunitárias desses territórios”, conta Fabiana Miranda, coordenadora de Gestão Territorial do OTSS e responsável pelas equipes que integram o Projeto Povos.
“O processo de cartografia social já é um grande desafio. Para que ele ocorra, é necessário que o povo se aproprie, precisa de proximidade, de construção de laços, de afetos, de confiança, participação, envolvimento. Falar disso tudo, em meio a uma pandemia em que precisamos nos distanciar, é um grande desafio”, avalia Miranda. Entre os protocolos seguidos, conforme orientação do Plano de Contingência da Fiocruz para a Covid 19, estão o uso de máscara pelas equipes que participam das atividades e cuidados como distanciamento e álcool em gel.
A realização do Projeto Povos é uma medida de mitigação exigida pelo IBAMA, no âmbito do licenciamento ambiental federal, da atividade de produção de petróleo e gás da Petrobras no Polo Pré-Sal. Quem executa é o Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS), uma parceria entre o Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) e a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz).
Ao todo, o projeto prevê a caracterização de 64 territórios e localidades tradicionais de Angra dos Reis, Paraty e Ubatuba até 2023. Até aqui, já foram caracterizadas mais de 30 comunidades tradicionais nos Microterritórios do Carapitanga e da Península da Juatinga, em Paraty, e no Microterritório Norte de Ubatuba. Atualmente, está sendo finalizada também a caracterização de mais três microterritórios: Norte de Ubatuba 2 (Puruba, Prumirim, aldeia Boa Vista, aldeia Rio Bonito, quilombo da Casanga, praia Vermelha e Barra Seca); Norte de Paraty (São Gonçalo, ilha do Pelado e ilha do Cedro e aldeia Paxató Ha-há-hae do Iriri) e praias do Sul de Paraty (trindade, praia do Sono e Ponta Negra)
O afeto e o fortalecimento de laços para trabalhar em tempos de pandemia
“A nossa entrada mudou bastante em relação aos primeiros microterritórios de atuação, porque íamos de comunidade para comunidade fazendo mobilização, com várias comunidades no mesmo ambiente, e fazíamos um ‘juntadão’ com as comunidades. E depois, por conta da pandemia, começamos a trabalhar por meio do telefone e as mobilizações foram feitas com apenas um pesquisador dentro de cada comunidade para respeitarmos os protocolos da pandemia. Dessa forma, eu acredito que encontramos um método melhor porque conseguimos dar mais atenção para cada uma das comunidades e extrair mais informações”, relata Guilherme Euller, jovem liderança do Quilombo da Fazenda, agente de campo do Projeto Povos e integrante do Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT).
“Há uma série de perdas que as comunidades estão passando e passaram - perder anciãos, mais velhos - viver está sendo um grande desafio e isso reflete em todo o nosso processo. Ao mesmo tempo, nos fortaleceu, nos uniu e potencializou o nosso trabalho. Criamos alternativas para fazer com todas as medidas sanitárias previstas pela Fiocruz, respeitando esse momento sensível das comunidades e acabamos nos multiplicando para poder ter uma capilaridade nas comunidades e manter a qualidade do trabalho”, compartilha Fabiana Miranda. Segundo ela, essa forma de trabalho possibilitou fortalecer essa rede de laços, de afeto e de escuta, uma vez que a caracterização acabou sendo feita dentro dos núcleos familiares.
"Compreender que aquele território não é só a terra, o mar, e sim uma grande biblioteca de conhecimento, o seu diploma não interessa, o que interessa naquele momento é como as comunidades resistem e lutam por seus direitos há anos e há anos têm seus direitos negados. Eu aprendi muito e estou aprendendo muito”
Aprendizado que não para
Construir uma caracterização da forma como está sendo realizada pelo Projeto Povos, feita pelas comunidades, é um processo rico de aprendizado tanto para quem trabalha no projeto como para quem recebe os pesquisadores. Fabiana Ramos é quilombola do Quilombo Santa Rita do Bracuí, também integra a equipe de campo do projeto e conta sobre sua experiência: “Está sendo muito rico esse processo, essa ida a campo, a criação desses mapas é de grande importância para essas comunidades. E, para mim, o maior aprendizado tem sido com as falas das lideranças. Compreender que aquele território não é só a terra, o mar, e sim uma grande biblioteca de conhecimento, o seu diploma não interessa, o que interessa naquele momento é como as comunidades resistem e lutam por seus direitos há anos e há anos têm seus direitos negados. Eu aprendi muito e estou aprendendo muito”, afirma.
“Nós avançamos muito enquanto equipe, enfrentando e co-criando a cada dia processos novos para seguir adiante e fazer um bom trabalho de caracterização. Vivemos um envolvimento muito grande da equipe, uma co-responsabilização e cooperação entre todos, que fortaleceu para que pudéssemos seguir com o que havia pela frente. Também avançamos muito em métodos de diversas linhas de cartografia social, aprendemos com os movimentos da favela do Rio de Janeiro, nas periferias de São Paulo, exemplos de Moçambique, Angola, cartografias do desejo, de outras comunidades tradicionais do norte do país. Tivemos esse mergulho nesses processos cartográficos e nos fortalecemos junto com a educação popular freiriana”, conta Fabiana Miranda sobre as formações que alimentaram as equipes de campo em meio a esse contexto.
Allan Yu, coordenador de campo da região Norte de Ubatuba 2, relata sobre os aprendizados que acontecem no campo: “Durante uma oficina de mapeamento que fizemos na aldeia Boa Vista, havia muitos jovens, e quando abrimos o computador para olhar o google earth junto com os mapas, um deles sentou-se na frente do computador e já começou a desenhar e fazer o mapeamento e dali surgiram outras iniciativas de montar o turismo da aldeia usando essas ferramentas, porque cria essa sinergia no território”, avalia.
“O processo é sempre muito rico porque traz os elementos das culturas, da diversidade cultural presente no território, e nos leva a reflexões profundas dos processos de desenvolvimento de cada lugar e no mundo em que vivemos, o quanto é importante trabalhar o processo de desenvolvimento contra-hegemônico, que valorize o bem viver e a qualidade de vida. A escrita e coleta de informações também é algo desafiador porque sempre temos que trazer a linguagem própria de cada território, de cada comunidade, e tentar traduzir da forma mais fiel possível aquilo que está sendo mapeado e caracterizado”, comenta Cristiano Lafetá, um dos coordenadores de campo do Projeto Povos.
A importância do Projeto Povos
“O Projeto Povos, para nós, comunidades tradicionais, é muito importante porque evidencia essa exclusão histórica do mapa de pertencimento e de reconhecimento ancestral socioambiental e sociocultural das comunidades tradicionais. E vem cobrar uma reparação por parte do governo nessas lacunas históricas, que as comunidades sempre viveram”, salienta Jadson Santos, liderança da comunidade caiçara do Sono em Paraty e pesquisador do OTSS.
“A cartografia é importante para podermos fazer nós mesmos, ter nossos pontos no mapa, e agora somos nós fazendo por nós mesmos. Antes eu era entrevistada e hoje eu que entrevisto, às vezes eu brinco com isso. A gente acha que é uma coisa tão complicada, mas, no final, não é tanto assim”, conta Ivanildes Kerexu, liderança da aldeia Rio Bonito de Ubatuba. Ela relata também que há grande participação da juventude nos processos da cartografia e que as tecnologias atraem e fazem com que possam experimentar novos pontos de vista. “Nós vimos o drone sobrevoar a aldeia, depois tirar foto e isso foi algo que nunca tínhamos visto e foi surpreendente para nós”, completa.
Cada passo para se criar uma cartografia
“Depois dessa primeira fase de mobilização, a gente realiza a FOFA, método que levanta fortalezas, oportunidades, fraquezas e ameaças da própria comunidade. Em seguida fazemos o mapa-falado, que também chamamos de “mapa afetivo”, momento em que a própria comunidade desenha como ela percebe e sente e vive seu território. Fazemos também levantamentos de lugares, festividades, símbolos importantes para aquele grupo. E então, a partir desse mapa, fazemos uma transposição dos elementos para um mapa de satélite e, junto com a equipe de geoprocessamento, o mapa final vai sendo construído a partir dos ícones e dos símbolos que se identifica no território”, explica Luisa Vilas Boas, caiçara da comunidade do Prumirim em Ubatuba e agente de campo do Projeto Povos.
Ela explica também que, após a realização de todo esse processo, é realizada uma etapa devolutiva do material com a comunidade que criou o mapa. Nesse momento, são analisados possíveis erros ou elementos que ainda podem ser modificados para que, finalmente, sejam encaminhados para impressão e distribuídos a órgãos que tenham como missão a defesa de direitos e territórios das comunidades tradicionais.
Levar informação e construir ferramentas de luta
O trabalho do Projeto Povos com a caracterização envolve, também, construir e consolidar um processo formativo sobre os grandes empreendimentos de petróleo e gás na região e seus potenciais impactos para dentro das comunidades. “Muitas vezes há uma grande falta de informação sobre isso. Não há consulta, não teve audiência suficiente da forma devida. Tem as condicionantes que vão chegando, mas ainda está muito distante das comunidades entenderem o que é, quais ameaças e quanto impacta dentro dessas comunidades”, comenta Raquel Albino Cananea, agente de campo do projeto e caiçara da praia do Sono em Paraty.
“O Projeto Povos é um caso que demonstra como pode ser diferente quando a comunidade se apropria de seus direitos e consegue exigir e se articular em relação a todas essas coisas que são novas no território. Foi uma conquista do FCT para ser feita pelas próprias comunidades, e para que seja uma ferramenta além da construção de um mapa, mas um processo de apropriação mesmo do próprio territórios”, finaliza Raquel.
*Para saber mais, acompanhe também os vídeos que já foram publicados do Projeto Povos nas nossas redes sociais.
Reportagem: Vanessa Cancian/Comunicação OTSS
Fotos: Allan Yu, Cristiano Lafetá e Anna Maria Andrade
Edição: Vinícius Carvalho/ Comunicação OTSS