O terceiro módulo do Maré de Saberes aconteceu no final de maio, em Boiçucanga, três meses após a tragédia-crime em Juquehy, Barra do Sahy, na busca por compreender o contexto das comunidades pós desastre socioambiental, as ausências do Estado e as articulações comunitárias para busca por justiça e reparação.
Além da compreensão do contexto do território pós tragédia-crime, outro ponto norteador no curso Maré de Saberes foi promover a preparação para as audiências públicas da Etapa 4 do Pré-sal em Caraguatatuba e Ilhabela, e a audiência pública com as famílias atingidas pelo desastre ambiental.
''A tragédia-crime aconteceu no dia 19 de fevereiro, causou morte. Muitas famílias perderam suas casas, seus parentes e ainda vivemos o descaso do poder publico", relatou a educadora Sabrina de Moraes e articuladora do movimento União dos Atingidos.
Abandono e coação são alguns dos sentimentos que externalizam as diferentes camadas do descaso das autoridades e foram sendo explicitadas pelos cursistas e educadores da região atingida. Ao longo do encontro de abertura, a roda de conversa trouxe outros agentes locais integrantes do Comitê União dos Atingidos, do Coletivo Pé de Barro e parceiros da Associação de Favelas de São José dos Campos, Instituto Polis, Campanha Despejo Zero e parlamentares, que vem construindo uma frente de denúncia contra as diferentes e recorrentes violências nas quais estão sendo submetidas as famílias atingidas.
A pesquisadora e ativista Ana Paula Sanches destacou a importância de compreender o que é e quais são os corpos atingidos pelo racismo ambiental. "O que não tem valor é o corpo quilombola, o corpo indígena. Precisamos existir na luta e no debate ambiental, nos colocar como sujeitos dessas história contra-colonial".
Destacando a compreensão de que os territórios atingidos pela tragédia-crime estão historicamente condicionados ao abandono e práticas de invasão de seus territórios e expropriação dos seus modos de vida, no segundo o dia, os cursistas visitaram a Aldeia Rio das Silveiras e passaram o dia no território, ouvindo e aprendendo com o pajé Sergio Karai.
O território composto por duzentas famílias, "até 2007 tinha um alto índice de mortalidade infantil, foi com a organização coletiva indígena que conseguimos erradicar esses números. Hoje temos escola indígena, foram 15 anos de luta, a escola existe há 22 anos. Formamos nossos educadores, somos nós que ocupamos e promovemos o ensino diferenciado na escola indígena", explica a liderança.
"Nossa luta é ensinada e mostrada pelos nossos ancestrais. Nós somos natureza, ela fala em nós. Nós somos defensores da natureza, por que nós somos ela", reforçou o pajé ao evocar um momento de concentração e reza com os participantes do curso.
"Se a gente não se une nos territórios, a gente se perde", desabafou a liderança jovem Guilherme Fuller, do Quilombo da Fazenda (Ubatuba-SP).
Jurandir, liderança do quilombo da Caçandoca e educador do projeto Redes, reforçou a necessidade das articulações e atuações conjuntas das pautas pela defesa dos territórios das comunidades tradicionais: "Se o marco temporal passar, ele será a morte dos indígenas. São os povos originários que cuidam de nossas fontes de água, por exemplo. A nossa luta é pelo direito à água, também. Por isso, privatizar a água coloca em risco a nossa vida" .
No terceiro dia do encontro, a jornalista, fotógrafa e ativista Flavia Bernardes (Movimento Nem um Poço a Mais) apresentou um longo panorama das problemáticas da cadeia produtiva e exploratória do pré-sal em outros territórios. "Precisamos, para além de analisar, entender a estrutura e as relações que envolvem a indústria petroleira, os lobbies, por exemplo. Em Macaé, há 40 mil pessoas em insegurança alimentar. As petroleiras fazem promessas que não se cumprem, não há melhoria para a comunidade", denunciou.
"Não é papel apenas das comunidades tradicionais cuidar e defender o mar. Isso é um dever, um papel de todos da sociedade, inclusive do Estado. Se o Estado não defende, precisa ser cobrado. A violência aumenta em todos os sentidos: de gênero, de classe, psicológica". Flavia atentou que "o Brasil quer ser o quinto maior produtor de petróleo. Quando falamos da não expansão do petróleo, estamos defendendo a regulamentação latifundiária dos povos tradicionais, alimentos sem agrotóxico. Estar em rede cria uma relação de proteção e fortalecimento das lideranças. Uma vez que não tem coisa que compense que mitigue a devastação do modo de vida".
Ao longo dos dias, os cursistas participaram de diferentes atividades culturais. Fandango, Samba, capoeira e oficina de slam com os poetas Brenalta (Slam do Verso / Boiçucanga) e Tairine Cristina (Slam Independente / Ubatuba), além da participação de coletivos culturais locais como Fandango de Boiçucanga e Capoeira Angola Raiz Negra foram as linguagens levadas para dar ao grupo leveza e instantes de respiro.
De Ilha Grande (RJ) para Boiçucanga, Cassiane Vitória participou do encontro e reforçou que "aqui não somos apenas um número. Aqui, estamos formando uma rede forte e potente. Não podemos desistir da luta. O território precisa da gente".
O próximo e último encontro do Maré de Saberes acontecerá no final de agosto e integrará as duas turmas: São Paulo e Rio de Janeiro.
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