Denise Oliveira, pesquisadora da Fiocruz Brasília, fala sobre o papel dos povos e comunidades tradicionais para a defesa do patrimônio alimentar e cultural do Brasil
Os saberes e sabores presentes na soberania alimentar do povo brasileiro são guardados pelos povos e comunidades tradicionais. De Norte a Sul do país, e com grande diversidade de forma e cores, essas populações mantêm viva a sociobiodiversidade daquilo que nos alimenta e também daquilo que nos cura.
Denise Oliveira, pesquisadora da Fiocruz Brasília, pesquisa e promove ações ligadas ao patrimônio cultural e alimentar do povo brasileiro há quase 20 anos, articulando temas como segurança alimentar e nutricional ao campo da alimentação, da cultura e saúde. A pesquisadora integra também o Observatório Brasileiro de Hábitos Alimentares (OBHA) e é editora chefe da Revista de Alimentação e Cultura das Américas, publicação que traz o alimento como elemento agregador da cultura humana.
Nesta entrevista concedida ao OTSS, ela fala sobre a agroecologia no contexto dos povos e comunidades tradicionais, comenta a experiência de promoção de territórios sustentáveis e saudáveis na Bocaina e defende a inclusão do ‘território’ na discussão sobre a promoção da saúde no Brasil. “A Fiocruz mostra que saúde não é só dar vacina, remédios e exames clínicos. Saúde requer uma ligação muito maior e que, ao final, é uma relação com o planeta Terra”, diz.
De que forma o trabalho com saúde das populações do campo se relaciona com a promoção da agroecologia?
Ao longo das minhas experiências com essas populações, acredito que elas foram e serão sempre as guardiãs da terra. A terra para elas tem um significado completamente diferente do que para a população que vive nas cidades, e nisso a agroecologia é mais um processo que permite a relação com a natureza do que a dominação do homem sobre a natureza. Elas são guardiãs das sementes, das práticas, dos patrimônios, dos aprendizados e nos ensinam muito. No caso da agroecologia, que aborda diversos olhares, as populações tradicionais já têm isso em sua própria visão de mundo. Elas não precisam ser formadas por nós da academia, isso está dentro do arcabouço de compreensão da relação de vida que elas têm com o planeta. As populações do campo, pela sua própria natureza de estarem integradas ao ciclo da natureza, ao próprio planeta, têm enorme capacidade de contribuir para a promoção da agroecologia.
Qual a importância desse trabalho na garantia dos patrimônios alimentares dos povos tradicionais?
Eu tenho focado meu trabalho com as populações quilombolas, porque temos uma questão ligada ao racismo histórico, estrutural e institucional. Essas populações têm muito mais relação com a pobreza, são consideradas o resíduo epidemiológico e ainda hoje apresentam indicadores altos de desnutrição, anemia, entre outras carências. Ademais, nunca se discutia como que essa determinação social se instala. E ela vai exatamente mostrar que como elas foram na contramão dos pressupostos do desenvolvimento social e econômico, principalmente na relação com a terra. E a terra não só como elemento de lucro, mas como o sagrado, e essas populações têm isso muito forte em suas concepções.
Quando observamos isso, identificamos uma série de patrimônios materiais e imateriais: as sementes, as plantas, os usos, os elementos feitos manualmente. Quando estudamos a culinária brasileira, ela é decorrente de patrimônios que foram construídos no Brasil pelas populações indígenas, africanas, portuguesas e outras que vieram pra cá. Para termos os patrimônios imateriais, precisa-se do patrimônio material. Eu não posso fazer determinada receita de comida se eu não tenho aquele feijão, milho etc. O avanço do agrobusiness que coloca a terra apenas como elemento de lucro faz com que se perca totalmente a relação do sagrado do ser humano com o planeta. Nesse contexto do agronegócio, temos uma profunda perda de patrimônios materiais e imateriais. Meu trabalho consiste em identificar os patrimônios que ainda resistem e dar luz a eles, fazendo com que eles sejam afirmados por políticas públicas no Brasil.
Como se dá esse trabalho em sua região? Qual relação você observa com a atuação do OTSS Bocaina?
Meu trabalho se dá por ação de uma pesquisa que não atua somente trazendo informações para o conhecimento, queremos realmente empoderar a população, seguindo um caminho similar ao que eu vi na Bocaina. Fiquei muito feliz em ver jovens quilombolas assumindo sua origem quilombola, sua origem negra, valorizando a prática da agrofloresta, valorizando o turismo que vai transformar a visão que as pessoas têm sobre esses lugares, é uma pesquisa que visa protagonismo e empoderamento social, acho que é o que fazemos aqui e vocês aí.
Você comentou sobre a ideia de um “território vivo”, aqui junto aos povos tradicionais da Bocaina. De que forma a soberania alimentar contribui para esse contexto?
A gente verifica que há uma vertente muito importante da vida nessa região da Bocaina. Vemos que essas populações, quando optam por trabalhar se relacionando com a natureza, não precisam aniquilar elementos da natureza. Trata-se de um território vivo pela dinâmica que ele tem, integrado aos processos sazonais de respeito à natureza. Ele está sempre vivo, consegue nascer de diversas formas. Vamos verificar outros processos de produção agrícola em que, às vezes, é preciso matar os solos e determinadas espécies para que outras nasçam. Essa relação cíclica que é comum, que está dentro de uma visão de relação com a natureza, que dá essa dimensão do vivo. Quando se desenvolve processos assim pode-se obter soberania alimentar. Esse conceito que é muito amplo, que gera autonomia, sem depender de outros países e outras estruturas sociais. No Brasil, dentro das comunidades tradicionais, isso significa consumir produtos ligados aos ciclos da natureza. Em determinados momentos vai dar um ou outro produto alimentar e essa variedade é importante para nós, seres humanos, pois garante a capacidade de poder comer aquilo que está próximo de nós e que tem a ver com as nossas histórias sociais, econômicas e culturais.
Uma vez que há muitos saberes, usos e conhecimentos mantidos pelos produtores agroecológicos, como evidenciar os perigos do agronegócio em contraponto com essas produções?
Esse é um dilema. Eu tenho falado que estamos vivendo um descolamento do campo para a cidade e isso é uma experiência recente que coincide com o processo da industrialização no mundo. E em busca de atender as demandas das sociedades industriais, a gente vai verificar um valor maior sobre a vida na cidade e um valor menor sobre a vida no campo. A verdade é que o desequilíbrio desse descolamento vai dar uma nova visão ao valor da terra. A terra perde o caráter fundiário no Brasil pelas próprias oligarquias de café, de cana, de gado, sobrando resquícios da grande tragédia social que foi a escravidão do povo negro no Brasil. Tivemos 456 anos de escravidão, temos mais tempo vendo a população escravizada do que não escravizada. As notas históricas disso estruturaram relações difíceis, não só da mão de obra que vai desqualificar os povos tradicionais, os negros, indígenas, dizimados, além da concentração fundiária na mão de poucas famílias, a chamada elite agrária.
De que forma podemos fazer com que a população das cidades compreenda a importância da terra e dos povos do campo para a sociobiodiversidade do planeta?
Para as populações da cidade, o valor da terra ainda é muito distante de forma que possa representar uma mudança de visão. De forma muito cuidadosa, tenho um longo caminho no Brasil de sair da valorização do interesse fundiário nas mãos de poucos. Hoje temos ouvido falar do quanto as terras indígenas no Brasil ocupam 13% do território nacional, e ficamos meio em dúvida dessa visão que quer aumentar o espaço do agronegócio. A ocupação do agronegócio é voltada para produtos de exportação como a soja e o gado. Transformar a compreensão da terra que tem influência das oligarquias brasileiras, e que estavam voltadas a mão de obra escrava, é nosso grande desafio.
Nas grandes cidades ainda vemos muitas dificuldades, as zonas urbanas ainda não entenderam que as produções de frutas e verduras vêm do campo. É um desafio de aproximar os conceitos da segurança alimentar e nutricional. Com e extinção do CONSEA não temos eco, estamos sem voz no Governo Federal, num dos momentos mais difíceis de compreender esse desenvolvimento centrado apenas no lucro e não na vida. Esse é um fator que ainda temos que resistir para fazer com que o campo se una em prol de lutar por uma melhor condição de vida para todas e todos.
Como você vê o papel da Fiocruz nesse desafio?
A Fiocruz é uma instituição de saúde e, durante todos os seus anos de existência, passou a compreender que a saúde não está apenas no campo biológico. É ela que mostra ao mundo e à sociedade brasileira que saúde não é somente o corpo e a biologia, e sim que esse corpo está inserido em um território social e cultural. A Fiocruz está assumindo esse papel e colocando essa discussão em pauta. Não é possível falar de saúde sem falar dos determinantes sociais e da cultura. O papel que a Fiocruz tem é de fazer essa discussão da forma mais ampliada possível. O mundo todo precisa disso e nós, brasileiros, ainda mais por conta desse contexto em que vivemos por conta das desigualdades sociais, da concentração de terra na mão de poucos grupos, da fome, do desequilíbrio climático geográfico. A Fiocruz mostra que saúde não é só dar vacina, remédios e exames clínicos. Saúde requer uma ligação muito maior e que, ao final, é uma relação com o planeta Terra.
Quais inspirações você carregou contigo após estar no território da Bocaina?
A Bocaina me trouxe diversas inspirações. Eu saí dessa região fortalecida porque vi várias coisas que eu acreditava como, por exemplo, essa capacidade de juntar caiçaras, indígenas e quilombolas pensando em ações e políticas públicas em comum. A Bocaina provou para a gente que isso é possível. A existência desse projeto é um alento mostrando que é possível ter territórios sustentáveis e saudáveis.
Texto: Vanessa Cancian/Comunicação OTSS
Foto: Vinícius Carvalho/ Comunicação OTSS
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