Iaci Sagnori, professora da Rede Municipal de Paraty nas escolas da costeira, conta sobre o cotidiano das escolas que lutam em defesa da educação e da valorização dos saberes tradicionais caiçaras.
Uma das profissões mais complexas, pouco valorizadas e desafiadoras que existe é a missão de ensinar dentro dos espaços educativos e institucionais. Se numa sala de aula dentro de uma cidade qualquer o desafio já é grande, imagina ter que criar possibilidades e ferramentas de aprendizagem dentro de comunidades tradicionais onde só se chega de barco ou por trilhas que exigem longas caminhadas?
Essa e outras histórias são contadas aqui por Iaci Sagnori, educadora que integra o Coletivo de Apoio à Educação Diferenciada e que é professora das escolas da costeira nas comunidades caiçaras do Sono e do Pouso da Cajaíba, em Paraty. Como, afinal, é o dia-a-dia de uma escola que tenta integrar ao currículo os saberes tradicionais caiçaras? E de que forma um projeto político e pedagógico diferenciado pode contribuir para fortalecer a identidade cultural dos povos tradicionais?
Iaci narra aqui suas experiências na educação, os desafios dessa jornada e as inspirações que a motivam a seguir em busca de um novo olhar sobre as nossas escolas.
Como você se apresenta e como começou sua história na luta pela educação diferenciada nas escolas caiçaras de Paraty?
Sou professora de português e literatura e me formei na UFRJ. Sempre participei do movimento estudantil e, desde então, estou junta dos movimentos sociais. Quando cheguei em Paraty, eu já conhecia o Jadson [liderança caiçara] e fui morar na comunidade do Sono. Conversando diariamente sobre os movimentos sociais, ele me falou da demanda das escolas caiçaras, da escola do Sono mais especificamente, e eu estava justamente morando ali. A gente chegou a escrever um projeto para a secretaria de educação antes da chegada da UFF propondo um modelo para começar o sexto ano. Aos poucos, fomos ganhando força, juntamente com o FCT nesse caminho, até que conseguimos criar um formato que fosse de acordo com a secretaria. Em 2016, a gente começou as aulas no Sono e no Pouso da Cajaíba.
Em que medida o olhar sobre a cultura dos territórios tradicionais fortalece a prática pedagógica dentro e fora da sala de aula?
Sobre o olhar para as pessoas do território, estamos formando a primeira turma do nono ano e a primeira turma de segundo segmento nas escolas da costeira. E a gente nesse processo de quatro anos de trabalho construiu várias referências, várias trocas muito positivas a partir da ideia e do sentimento de valorização da cultura da própria comunidade. Essa troca mudou completamente minha prática profissional e minha visão pedagógica a partir do diálogo com os griôs, com as mestras e mestres, com as mães, com as lideranças e também com os adolescentes. Hoje, quando conversamos entre nós, professores, vemos que um dos principais resultados é esse sentimento de orgulho da cultura, de não ter vergonha de afirmar que é caiçara, que vem de uma comunidade tradicional, de entender o valor de estar fora da cultura hegemônica e de preservar e cuidar dessa cultura, da natureza que está em volta, da sua história e das crianças que estão vindo. Eu acho que isso é uma das coisas mais fortes que percebemos dentro desse processo.
Quais os maiores desafios enfrentados nesse caminho e de que maneira eles impulsionam essa luta?
Quando começamos a implementar um trabalho novo, principalmente dentro do sistema tradicional de ensino, há muita resistência de diversas partes, até mesmo dos companheiros e companheiras de sala de aula que estão presos ao modelo tradicional. Além da escola num modelo diferente, conseguir entender junto com a comunidade que educação diferenciada não quer dizer que seja pior é outro desafio. Entender que não é só aquele modelo convencional que funciona foi e é um dos grandes desafios que enfrentamos para que consigamos trabalhar realmente em parceria com a comunidade. É preciso um diálogo constante sobre a expectativa das famílias sobre a escola e o que a gente pensa em fazer lá naquele espaço.
Esse é um dos desafios, abrir um novo caminho e modificar o que é feito há séculos. Outra dificuldade que temos é a vontade política. São comunidades que estão isoladas, na sombra do atendimento do serviço público. Quando você vai e fala da importância de se pensar uma escola para uma comunidade específica, para aquela cultura, isso é desafiador. Ouvimos muitas vezes, de lideranças políticas, que estávamos em busca de privilégios para aqueles lugares, por querer uma escola caiçara e tudo mais. Entender que comunidades tradicionais isoladas podem e devem ter um olhar específico é atender a um direito. Isso é um conflito difícil que enfrentamos sempre. A dificuldade do acesso, que é mais custoso, o barco sai mais caro para a prefeitura, levar estrutura para as escolas na costeira...
Com relação ao dia-a-dia da escola diferenciada, como você explicaria essa experiência para alguém que nunca ouviu falar do assunto?
Sobre o dia-a-dia na escola, a gente procura sempre trabalhar os conhecimentos do modelo da escola tradicional com as demandas da comunidade. Então, montamos um currículo da seguinte forma: fizemos uma entrevista com as famílias antes do início das aulas, junto com os alunos, elencamos os temas principais que eles gostariam que fossem abordados dentro da escola. Com esses temas, formamos uma rede temática para criar projetos. E a ideia dos projetos é que eles consigam dar conta dos conteúdos curriculares e que dialoguem com as demandas e anseios da comunidade naquele momento, com algo que se queira investigar.
Por exemplo, fizemos um guia turístico local, pensado pelas crianças, com os atrativos, os valores culturais e a história da comunidade. Montamos esse guia, entrevistamos várias pessoas e todas as disciplinas curriculares trabalharam esse tema. Fizemos uma cartografia social daquele local, descrição das trilhas, direções geográficas, vocabulário básico para o turismo em inglês, trabalhamos desenho, fotografia, uma série de temas. A ideia é essa, a gente interligar os conteúdos da escola para responder ou para investigar alguma demanda da comunidade naquele momento. O último projeto que trabalhamos foi um livro que contava história da comunidade, entrevistamos os mais velhos e, a partir das entrevistas, pensamos num formato para contar essas histórias. Chegamos ao modelo do cordel, ilustramos com gravuras de um artista plástico da própria comunidade e fomos convidados a apresentar esse trabalho na Flip. Envolveu todas as disciplinas. Nesse momento, estamos trabalhando com permacultura. Estamos há algum tempo fazendo a horta da escola, mas sempre esbarramos na questão de estrutura, cerca, ferramentas. Queremos muito trabalhar a ideia da permacultura, que é um nome acadêmico mas que se fundamenta nos saberes tradicionais.
De que forma as famílias participam do processo de aprendizagem?
Sobre as famílias, esse é um dos nossos desafios: a gente conseguir que a comunidade esteja realmente presente na escola, que a gente consiga ter um diálogo mais aberto e mais presente com as famílias. Estamos nesse movimento há algum tempo para formar a associação de pais e mestres. Hoje a comunidade confia no trabalho que estamos fazendo, confia no meu trabalho, e as mães são nossas amigas e parceiras. Isso dá segurança. A relação afetiva com a comunidade foi desenvolvida ao longo do tempo. Agora essa troca está sendo uma construção nossa. Essa participação mais organizada com a comunidade, essa troca, a construção dos projetos pedagógicos, estamos nesse processo agora. Estamos pensando em como chamar, para uma formação, pais e mães interessados em entender o que estamos fazendo.
Como você considera que o poder público pode e deve incentivar as práticas da educação diferenciada para fazer com que ela se torne prioridade entre as escolas das comunidades tradicionais?
Paraty é uma cidade diversa que tem em seu território várias comunidades tradicionais, sendo que muitas pessoas são remanescentes desterritorializados que foram morar na cidade. Pelo menos, dentro da cidade de Paraty, a educação diferenciada poderia ser para todas as escolas, todas teriam o potencial para desenvolver projetos diferenciados dentro do currículo. Eu acho que, com esse título que Paraty ganhou agora de Patrimônio Mundial da Humanidade, é uma obrigação do poder público pensar em como valorizar e expandir esse trabalho que vem sendo feito nas escolas do Sono e do Pouso. Eu acho até que eles estão entendendo que isso é uma demanda tanto para eles quanto para as comunidades que são atendidas. Precisamos ampliar para que, cada vez mais, professores e professoras tenham acesso a esse tipo de trabalho em escolas dentro e fora das comunidades tradicionais. As escolas da cidade recebem alunos da costeira, dos quilombos, das aldeias indígenas.
O que fica para você, professora, dentro desse processo intenso de troca de saberes?
Estamos vivendo esse momento de avaliação final de um ciclo, formando a primeira turma. E isso passa por uma avaliação pessoal e profissional. Eu sou muito grata por ter a oportunidade de ter trabalhado nesse processo, ter acompanhado ele todo, ter me dedicado a ele, isso me transformou como profissional, como pessoa, e eu aprendi muito com os saberes daquelas comunidades. Desde que eu comecei ali, sempre foi um intuito meu de valorizar isso e absorver o máximo possível. De alguma forma me sinto contemplada por ter essas trocas. Tenho certeza que estamos formando cidadãos conscientes, críticos, pessoas que vão estar cuidando e preservando aquela natureza, aquele espaço, aquela cultura. Isso, para mim, é o maior valor do meu trabalho, para além de dinheiro, de projeção, que o trabalho possa te dar. Essa é a minha busca, é conseguir trabalhar o valor do ser humano no mundo. E essa turma que estamos formando me deixa muito grata porque percebi que pudemos colaborar e contribuir para isso. Durante meu trabalho nesse percurso, todos aprendemos muito, tanto quanto movimento social, quanto coletivo, amizades, trocas reais e afetivas que se tornaram possíveis nessa jornada.
Texto: Vanessa Cancian/ Comunicação OTSS
Edição: Vinícius Carvalho/ Comunicação OTSS
Foto: Felipe Scapino/ Comunicação OTSS