Denise Luiz, erveira caiçara de Ubatuba, congrega saberes sobre mais de 160 plantas medicinais. Em entrevista ao OTSS, ela fala sobre sua história e a importância das ervas medicinais para promoção da saúde e a defesa dos territórios tradicionais.
O trabalho com as ervas medicinais tradicionais é seu objetivo de vida. Sua história foi escrita desde sempre pelo convívio com as mais velhas e mais velhos bebendo desses aprendizados no Sertão do Ubatumirim, em Ubatuba (SP). Hoje, Denise Luiz coordena o Ervário Caiçara, espaço que é um verdadeiro mergulho no que há de saberes e práticas dos matos, ervas, plantas e árvores dos povos tradicionais caiçaras.
"A mais clara lembrança era que neste quintal florido não havia uma flor que não servisse como remédio", lembra. Nesta entrevista, ela fala sobre sua trajetória como erveira e ativista da cultura tradicional caiçara, destaca a importância da aliança entre a ciência e o saber tradiciona,l e cobra maior valorização para os erveiros que tanto contribuem para a saúde e o registro dos saberes ancestrais dos povos e comunidades tradicionais.
Como você se apresenta e de que forma se deu esse caminho por entre as ervas tradicionais?
Sou filha de Ubatuba, nasci e me criei nesta terra, minha avó era agricultora, meus bisavós também; cresci no quintal medicinal da minha família paterna, onde aprendi desde cedo a importância do remédio plantado na porta de casa, e a mais clara lembrança era que neste quintal florido não havia uma flor que não servisse como remédio. Me formei em Ciências Jurídicas e Sociais mas nunca me distanciei deste conhecimento ancestral.
Para mim não houve uma transição para o caminho das ervas medicinais. Foi muito natural, porque sempre tive convívio com pessoas mais velhas que me passavam seus conhecimentos quando viam minha curiosidade acerca do assunto “os remédios do mato”. Convivi desde nova com a Dona Joana - Erveira aqui do Sertão do Ubatumirim - que me passou muitos conhecimentos até seu falecimento em 2014. O irmão dela, Seu João Alexandre, foi também um erveiro muito conhecido e me curou da bronquite quando eu tinha 6 anos. É com muito respeito que guardo o que aprendi com os antigos.
Ainda assim, muitos conhecimentos foram adquiridos com estudos, cursos, pesquisas e hoje possuo um bom acervo de livros sobre fitoterapia e outros assuntos ligados ao tema. Estudo diariamente, me atualizo sempre, acho necessário o conhecimento tradicional andar de mãos dadas com a ciência, tenho uma responsabilidade com a saúde das pessoas que vêm se consultar comigo aqui no Ervário. Por isso, é importante saber o que estou fazendo ao dar uma erva para a pessoa se curar, tenho muita responsabilidade com esta medicina ancestral, que sofre ainda nos dias de hoje perseguição das indústrias farmacêuticas.
O que é o espaço do Ervário?
O Ervário Caiçara surgiu em 2012, quando percebemos que, ao lado da pequena roça de mandioca do meu pai, eu havia plantado muitas ervas medicinais e que as pessoas aqui da comunidade vinham buscar as ervas para determinados problemas de saúde e às vezes traziam mudas também. Hoje, o espaço de plantio das ervas cresceu e conta com quase 180 espécies de medicinais. O principal objetivo é servir a comunidade na busca de alívio para os males de saúde. O Ervário também se tornou um local de referência para muitos que ainda acreditam na cura natural. Nosso espaço não é um corpo estranho dentro da comunidade, nós estamos falando a mesma língua, serve para lembrar os mais velhos o conhecimento que anda esquecido, serve para ensinar os mais jovens que o conhecimento ancestral de como cuidar da saúde está no pai dele, na mãe e nos avós.
De que forma esse trabalho fortalece a identidade do povo caiçara de Ubatuba?
Junto ao Ervário funciona o Centro de Tradições Caiçaras (CTC) “Casa da Tia Joana”, que é mais um braço para o fortalecimento da cultura local e em 2015, em parceria com o instituto Bacuri, desenvolveu um trabalho com as crianças e jovens da comunidade do Ubatumirim, Itamambuca e Camburi com atividades semanais de conscientização ambiental, esportes e cultura caiçara. Todas as atividades propostas no CTC dentro do Ervário têm como objetivo maior mostrar a nossa cultura através do incentivo das famílias daqui em produzir artesanato, alimentos típicos, quintais medicinais. Há pessoas de outras lugares de Ubatuba que se inspiraram em criar espaços assim em seus bairros, sempre incentivo pois acho que este é o caminho.
Como esse trabalho se relaciona com a agroecologia?
Agroecologia é uma palavra muito em destaque hoje, mas os caiçaras sempre cultivaram a terra dentro da visão da agroecologia. Suas roças e a floresta estão juntas em perfeita harmonia, a maneira tradicional de se cultivar uma roça em conjunto com os ciclos da natureza, o respeito com a recuperação do solo (pousio) e a forma orgânica de plantio. O Ervário não faz diferente, as ervas plantadas aqui são adubadas com insumos naturais, não precisamos fazer controle de pragas, pois o cultivo de várias espécies proporciona o equilíbrio, temos um pequeno mandiocal no meio das ervas, bananeiras, inhame, cacau, taiobas, tudo em sistema de roça caiçara, as ervas convivem em total harmonia com a nossa roça de subsistência.
Qual a importância dos quintais de ervas para a promoção da saúde dos povos tradicionais?
Os benefícios de um quintal medicinal em casa são muitos, às vezes você está ansioso e um chá de capim limão resolve, uma gripe um xarope combate, sem maiores efeitos colaterais uma pessoa diabética tem uma melhora geral no quadro com chás e uma alimentação adequada. Não estou retirando a importância dos exames, dos médicos, mas os povos tradicionais não têm acesso a um hospital, estes estão distantes das comunidades. Ter ervas no quintal para resolver problemas de saúde é de grande valor.
Em que momento você conheceu o OTSS e como acredita que acontece a convergência de ideias entre seu trabalho e o nosso?
Em 2015 nós cedemos o espaço do Centro de Tradições Caiçaras para um encontro de jovens do Fórum das Comunidades Tradicionais (FCT) e foi muito especial conhecer jovens indígenas, quilombolas e caiçaras tão bem engajados na luta pelo seu território. Desde então fazemos esporadicamente parcerias, como no Reencontro dos Conhecedores de Ervas Medicinais Caiçaras, que foi um momento onde recebemos os quilombolas do Campinho, foi marcante pra nós trocar experiências com eles. Temos em comum a luta pela preservação da cultura tradicional, o desejo de que ela resista em seu território, a agregação de conhecimentos e valores para sua continuidade.
Como você acredita que podemos ampliar o debate das ervas e da boa alimentação para a população em geral?
Criando meios para que isso aconteça. Políticas públicas existem, mas falta incentivo aos profissionais da área da saúde para que se interessem pelo tema. Nós aqui desenvolvemos um trabalho pequeno, não conseguimos atingir a maior parte das pessoas do bairro. Nós aqui e outros que trabalham nesta rede não damos conta de difundir para a maior parte da população os benefícios da alimentação natural, da promoção da saúde através das ervas. Estamos dando passinhos, não podemos esperar que o poder público faça, temos que andar no nosso trabalho diário.
Quais são seus sonhos dentro dessa trajetória?
São muitos. O primeiro deles é que o erveiro e o pequeno agricultor que está inserido nas comunidades tradicionais ou nos centros urbanos possa ter seu trabalho reconhecido e valorizado. Estas pessoas poderiam, com muito proveito, auxiliar dentro dos postos de saúde e centros comunitários, o Erveiro sendo valorizado tem que ser remunerado para atuar como agente de saúde, porque já cumpre este papel, a agricultura agroecológica tem que ter incentivos, isso é promover a saúde, o trabalho e a dignidade destes povos tradicionais.
Texto e Fotos: Vanessa Cancian/ Comunicação OTSS