Em entrevista para o OTSS, Luna Andrea Kintana, representante dos povos indígenas da Colômbia, compartilha histórias, saberes e lutas em defesa dos povos indígenas do continente
A luta, a visão de mundo, os desafios e a história dos povos indígenas colombianos são apresentados aqui por Luna Andrea Kintana, liderança que esteve presente na Casa dos Povos, encontro realizado pela Fiocruz e pelo Fórum de Comunidades Tradicionais (FCT) na sede do Observatório de Territórios Sustentáveis e Saudáveis da Bocaina (OTSS) para a constituição de uma rede de colaboração internacional que consiga promover os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU (ODS) em territórios tradicionais.
“Eu sinto que foi a Terra que me educou. Foram as vacas, as galinhas, os pássaros, o céu, as estrelas e a luta. Foram quem me ensinaram que há uma ordem no mundo que precisa ser respeitada, se fecha de noite, se abre de dia”, conta a indígena. Em entrevista ao OTSS, ela transmite parte dos saberes e narrativas do seu povo e a cosmovisão que permeia suas diversas possibilidades de olhares sobre o mundo e a humanidade.
Durante sua passagem pelo OTSS, ela também apresentou uma performance da dança tradicional da comunidade de Senú da região de Bolívar, do povoado Talaigua, chamada de “Danza faraotas”. A dança faz referência histórica aos homens que se disfarçavam de mulheres para enfrentar as violações dos espanhóis contra as mulheres indígenas colombianas e fez menção à importância da “Madre Tierra” e à resistência feminina na América Latina.
Confira abaixo a entrevista completa:
Como você se apresenta e nos conta um pouco da sua história?
Meu nome é Luna Andrea Kintana e me dei conta de que sou acompanhada por muitos seres que há no universo. Eu cresci em um local onde há muita vulnerabilidade com crianças indígenas que não têm casa, não têm alimento, não têm educação e as pessoas ao redor se aproveitam para usar essas crianças para o tráfico e a prostituição. Eu fiquei órfã de pai e mãe e fomos eu e meu irmão criados por uma outra família não indígena, o que fez da nossa infância um tempo muito difícil.
Qual o nome da sua comunidade e de que forma as lutas acontecem nesse local?
Enveradovira, nome do lugar de onde eu venho e que significa “gente de montanha que trouxe água”. Nessa região, em todas essas comunidades, temos a concepção de que nascemos da água e nos tornamos água ao final da nossa vida. Nossos povos são um dos maiores da Colômbia e estamos também na região do Panamá e baixamos por todo o pacífico. Sempre temos sido muito invadidos porque as terras são muito ricas em ouro e outros minerais, e nós sempre lutamos contra a construção de rodovias e grandes empreendimentos. Nos chamam de preguiçosos, dizem que não sabemos fazer nada, além do que muitos ali não falam espanhol. Eu falo porque a mim me tiraram da comunidade e eu tive que aprender.
Muitos se protegem de falar, porque quando começam a falar outras línguas há uma mudança. Porque, por exemplo, a palavra morte não existe dentro da nossa concepção, nós tratamos como uma transformação. Quando há uma morte, ou quando alguém te faz algum mal, há uma morte que deve ser transformada e buscar soluções para aquilo que está passando. Também não existe a ideia de culpa e perdão.
De que forma você conseguiu transformar essa realidade em busca das suas reais conexões?
Eu nasci sem identidade, totalmente quebrada, destruída, e ia crescendo até uma idade que comecei a me perguntar porque eu não tinha casa e a senhora que cuidava de mim me maltratava. Porque outros tinham onde dormir e onde comer e eu não. Depois de todo esse ocorrido, uma força interna que sempre me ligou é a conexão com a terra, a conexão com as árvores, porque mesmo que eu estivesse no mundo ocidental eu ficava lá, pendurada nas árvores horas inteiras. Como não tinha muito o que comer, eu comia as goiabas das árvores, era meu café da manhã, meu almoço.
Eu sinto que foi a terra que me educou. Foram as vacas, as galinhas, os pássaros, o céu, as estrelas e a luta. Foram quem me ensinaram que há uma ordem no mundo que precisa ser respeitada, se fecha de noite, se abre de dia, nos indica os animais que devemos comer frente a coisas consumistas como o cigarro e o álcool. Eles nos mostram que não é preciso ir até esses extremos para estar bem consigo mesmo. Os indígenas aqui usam seus cachimbos para estar conectados, e não para se desconectar.
Como a espiritualidade se apresenta como uma ferramenta de luta e fortalecimento dos povos?
O grande problema que temos em Colômbia é o narcotráfico com a cocaína, todo mundo acha que somos pessoas drogadas, enquanto que, na realidade, uma grande porcentagem não tem esses hábitos. Logo, uma grande parte possui uma conexão espiritual com a terra, com a comunicação, com outros saberes e outros diálogos que existem no mundo, não somente minha palavra está aqui contigo porque eu falo e você compreende, mas também o espaço está escutando todo o tempo o que eu digo. Nós indígenas dizemos muito cuidado com suas palavras, não saia aí falando de todos, porque isso gera mal estar. Para isso, nas comunidades, existem muitas cerimônias com o objetivo de limpar, de fazer o que queremos fazer e também nossas cerimonias são tratadas de pagas, de bruxarias, e são elas que nos ajudam a sustentar a força para as crianças e jovens das gerações que estão chegando.
Onde você deposita sua esperança?
A vida é criar outras esperanças para continuar, como uma fonte de água que está alimentando todo o tempo sonhos, capacidades endógenas internas para dizer sim. Podemos fazer mudanças desde os outros, desde as comunidades, desde os bairros. A vida é simples: respirar, comer tranquilo, trabalhar, é necessário trabalhar, porém sem tornar-se escravo nem de nada e nem de ninguém. Temos que trabalhar desde dentro para fora, com humanidade, cultivar uma boa esperança.
Por exemplo, na Colômbia, nos chegaram a escravizar e a olhar se teríamos alma ou não teríamos alma na concepção dos reinados espanhóis, e enquanto debatiam isso nos colocaram para sermos escravos. No nosso olhar indígena isso não está certo, não temos, não aceitamos por nada no mundo. Há uma história antiga que nossos povos contam que nos prenderam e nos obrigaram a trabalhar e que havia um dia no ano em que nos davam de “folga”. Quando chegou aquele dia, todos os indígenas subiram até o alto de uma montanha e se jogaram, um após o outro, num grande genocídio, mas mostrando que não iam viver para serem escravos.
Texto: Vanessa Cancian/ Comunicação OTSS
Fotos: Eduardo Napoli/ Comunicação OTSS
Edição: Vinícius Carvalho/Comunicação OTSS
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